quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Conto I

Já era cedo, e às 6h30 da manhã o centro da cidade de São Paulo clareava.
Na Rua São Bento repicavam imponentes os sinos sobre aquela gente trabalhadora e infeliz, que parecia acompanhar com os passos aquela música sombria.
Os pombos, com ar soberbo, todos empoleirados sobre os prédios altos observavam o início do movimento sem fim.

Dentro da padaria, o sotaque nordestino dos novos paulistas saltava aos ouvidos e só se ouvia sobre o jogo de futebol da noite passada. Todos preparavam-se para um novo dia, ouvia-se na chapa quente a manteiga derretida, os ovos fritos, o tilintar dos copos, o suco de laranja sendo feito, começava a sinfonia do reinício . Era uma orgia de cheiros bem conhecidos daquele povo, era o café, as frutas frescas, queijo, bolo de fubá, perfume, fritura, leite quente, urina, fumaça de caminhão.

No 14° andar de um dos grandes prédios comerciais, ao se ficar bem quieto e ao aguçar os ouvidos, percebia-se o farfalhar da cidade desabrochando como flor carnívora, pronta para devorar aquele que estivesse desavisado.

A rua, rapidamente, já tomava outro aspecto, havia gente em todo canto, e com os camelôs a postos, começava aquela gritaria, o barulho rápido dos sapatos, a faladeira contida, o desgosto escancarado, o ódio latente. As lojas abriam e via-se o colorido sujo das peças baratas em exposição, algumas pessoas já fuçavam violentamente os balaios, outras se prensavam dentro dos elevadores e se esbarravam ferozmente a caminho do metrô.

E agora, estavam todos atordoados com o peso daquele dia que sempre se renova e estavam todos mais velhos do que ontem. O vagão acolhia toda aquela gente fria, sóbria, mesquinha, que nem se olhava na cara, incapazes de reconhecer o próprio irmão.Todos os homens se amontoavam, um por cima do outro, engalfinhando-se, visivelmente incomodados, um respirando o ar do outro, sentindo-se invadidos, mexendo os braços, as pernas, acomodando-se, todos a procura de melhor conforto. Deixavam o vagão irados, sem nem parar para sentir o alívio do movimento livre.

No Tatuapé, ao subir a rua Tuiuti, a poluição fétida do trânsito já lento competia com a fumaça dos cigarros, fumados freneticamente, passando de mão em mão.

Na escola de ensino a longa distância, o silêncio era total. Os alunos nervosos, todos preocupados com a resultado final, estalavam os lábios, mexiam sem parar os lápis, resignavam-se com aquilo tudo. As provas amassadas eram as únicas ruidosas, pareciam anunciar as respostas em cochicho. Ninguém olhava para a rua e entre as quatro paredes brancas, não era possível imaginar que o mundo girava lá fora.


Ao meio dia, o sol escaldante nas costas, com a luz queimando os olhos aquela gente não era mais humana. Eram todos suados, famintos e cansados do dia que mal havia começado. A movimentação não parava, cada um indo para o seu canto, o destino escolhido a cada instante, todos nas mãos de Deus.
Saindo dos vagões do trem, na muvuca, se formava, como um feto mal gerado, a multidão insólita do cotidiano. Olhando pra toda aquela gente, era incômodo acreditar que existe individualidade.